ÁGUIA DE HAIA – 4ª PARTE: QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS DO BRASIL
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QUANTIDADE E QUALIDADE
Quereis ver, de um relance, a distância entre a inconsciência do peso e o peso da consciência? Comparai, nesta guerra ainda mal apagada, nesta guerra cujo rescaldo chameja ainda, comparai aí essa Bélgica de oito milhões de almas com aquela Rússia de cento e oitenta milhões de homens; e vede como saíram as duas do embate com os gigantes da força. Apesar de mal organizada, uma era um colosso militar. Não minguavam os milhões dos seus exércitos os mais bravos soldados haviam quebrado as molas morais ao seu governo, à sua sociedade, ao seu povo; e o monstro armado, cuja imensidade se levantava como a de um Goliath nas esplanadas da luta, ruiu, juncando hoje o solo dos seus destroços, combatentes uns com os outros, sob o domínio da miséria, da fome, da anarquia, meneados por dois agentes estrangeiros, ao passo que a Bélgica, arcando com a invasão até ao último instante, exausta quase até à derradeira gota do seu sangue, hóspeda em uma capital emprestada, atravessa invencível a sua via dolorosa, e ressurge do seu Calvário, laureada, gloriosa, divina, com a sua nacionalidade intacta, o seu prestígio multiplicado, as raízes do seu futuro borbotantes de seiva. Tanto vai, senhores, do ser grande pela quantidade a ser grande pela qualidade.
Considerai qual das condições haveis de escolher, operários brasileiros. Uma acaba desagregada pelas circunstâncias da sua inferioridade.
A outra, sustentada pela excelência do seu caráter, resiste a todas as provas, e de cada uma se desembaraça avantajada.
ADULAÇÃO E AMIZADE
Todas as grandezas, senhores, todas as grandezas são aduladas.
A vossa tem também os seus cortesãos; e nenhum deles se deve mais arrecear pois é, de todas, a mais nova inexperiente, a mais desacautelada, e, pelo
generoso dos seus impulsos, a mais susceptível de cair nos laços da tentação, quando ela embebe a linguagem na cor dos sentimentos nobres. Em mim, bem sabeis que não ides ter um cortejador; mas, se vos mereço justiça, deveis estar certos de que podeis contar com um amigo.
O TRABALHO
Há na vossa grandeza um condão, para atrair os que se não rendem a outras: é que é a grandeza do trabalho. O trabalho não é o castigo: é a santificação das criaturas. Tudo o que nasce do trabalho, é bom.
Tudo o que se amontoa pelo trabalho, é justo. Tudo o que assenta no trabalho, é útil. Por isso, a riqueza, por isso, o capital, que emanam do trabalho,
são, como ele, providenciais; como ele, necessários, benfazejos como ele. Mas já que do capital e da riqueza é manancial o trabalho, ao trabalho cabe a primazia incontestável sobre a riqueza e o capital.
Lincoln não era um demagogo, não era um revolucionário, não era um agitador popular. Era o presidente da grande república norte-americana durante a mais tremenda crise da sua história; e o consenso geral da posteridade o sagra, hoje, como o maior gênio de estadista que a tem governado. Pois Lincoln, senhores, não duvidava reivindicar, em uma das suas mensagens ao Congresso Nacional, em dezembro de 1861, a preeminência do trabalho aos outros fatores sociais.
O trabalho – dizia ele – precede ao capital, e deste não depende.
O capital não é senão um fruto do trabalho, e não chegaria nunca a existir, se primeiro não existisse o trabalho. O trabalho é, pois, superior ao capital, e merece consideração muito mais elevada.
TRABALHO E ESCRAVIDÃO
Exprimindo este sentir, muito mais generalizado atualmente no seio dos Estados Unidos que há sessenta anos, quando o grande homem de Estado o anunciava de tão alto, Lincoln falava como quem aprendera a conhecer o trabalho, arcando com o seu maior inimigo, a propriedade servil. Foi aí, foi nessa rude escola, foi com essa experiência dolorosa, que também aprendemos a estimá-lo e amá-lo os abolicionistas brasileiros.
Quando o coração me começou a vibrar dos sentimentos, que me têm enchido a vida, o trabalho arfava acorrentado à rocha da escravidão, onde lhe dilacerava as entranhas o abutre da cobiça desumana. No dia em que o raio de Deus fundiu aquelas cadeias, bem sentimos nós outros, os que havíamos buscado colaborar na obra da Providência, adiantando-lhe a data, que de sobre o granito, onde se acabavam de partir os grilhões da raça cativa, se erguia um poder novo, um poder entre nós desconhecido, o poder, ainda inconsciente, do trabalho regenerado.
Dentre os que tínhamos levantado o picão ou o camartelo contra o penedo, a que se chumbava a instituição maldita, cada qual estreitava ao peito as lembranças do seu contingente para a campanha em que entrara. O meu fora modesto. Mas abrangera tudo o que eu podia.
Com ela me estreei na tribuna popular acadêmico ainda, encetando-a com a primeira conferência abolicionista que se ousou em São Paulo.
Depois, a minha pena, a minha palavra deram a essa causa o melhor do meu ser, e dessa causa receberam o melhor das suas inspirações. Tive a honra de ser o autor do projeto Dantas, de escrever, em sua sustentação, o parecer das comissões reunidas, de ser, na Câmara dos Deputados, o seu órgão e bandeira, de me ver derrotado por amor dele nas eleições subseqüentes, de combater a Lei Saraiva, de reivindicar para a consciência da Nação brasileira o mérito do ato da redenção, de incorrer nas ameaças da célebre guarda negra, de não faltar nunca, nos momentos mais arriscados, com uma devoção, que nunca se desmentiu, e que não quis nem teve jamais, a troco de todos os serviços, outro interesse, ou paga, se não perigos, ódios e vinganças.
A RAÇA LIBERTADA
Estava liberto o primitivo operariado brasileiro, aquele a quem se devia a criação da nossa primeira riqueza nacional. Terminava o martírio, em que os obreiros dessa construção haviam deixado, não só o suor do seu rosto e os dias da sua vida, mas todos os direitos da sua humanidade, contados e pagos em opróbrios, torturas e agonias.
Mas que fizeram dos restos da raça resgatada os que lhe haviam sugado a existência em séculos da mais ímproba opressão? Nessas ruinarias havia ainda elementos humanos. De envolta com as gerações exaustas, que o túmulo esperava, estavam as gerações válidas, umas em plena virilidade, outras vencendo a adolescência, outras abrolhando, nascentes ainda, no meio das ruínas da sua ascendência exterminada. Que movimento de caridade tiveram por esses destroços humanos os árbitros do bem e do mal nesta terra? A responsabilidade não é da monarquia, que expirou ao outro dia da abolição. A responsabilidade não pode ser também do Governo Provisório, que em só quatorze meses teve de liquidar um regímen e erigir outro. Mas ao governo revolucionário sucederam vinte e nove anos de república organizada, com oito quadriênios presidenciais de onipotência, quase todos em calmaria podre. Que conta darão a Deus esses governos, senhores, de tudo o que ambicionaram, poderosos para tudo o que quiseram, livres em tudo o de que cogitaram, – que contas darão a Deus da sorte dessas gerações, que a revolução de 13 de maio deixou esparsas, abandonadas à grosseria originária, em que a criara e abrutara o cativeiro?
Era uma raça que a legalidade nacional estragara. Cumpria às leis nacionais acudir-lhe na degradação, em que tendia a ser consumida, e se extinguir, se lhe não valessem. Valeram-lhe? Não. Deixaram-na estiolar nas senzalas, de onde se ausentara o interesse dos senhores pela sua antiga mercadoria, pelo seu gado humano de outrora. Executada assim, a abolição era uma ironia atroz. Dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressaram absolutamente da sua sorte, não vinha a ser mais do que alforriar os senhores. O escravo continuava a sê-lo dos vícios, em que o mergulhavam. Substituiu-se o chicote pela cachaça, o veneno, por excelência, etnicida, exterminador. Trocou-se a extenuação pelo serviço na extenuação pela ociosidade e suas objeções. Fez-se do liberto o guarda-costas político, o capanga eleitoral. Aguçaram-se-lhe os maus instintos do atavismo servil com a educação da taberna, do bacamarte e da navalha. Nenhuma providência administrativa, econômica, ou moral, se estudou, ou tentou, para salvar do total perdimento esses valores humanos, que soçobravam. Nem a instrução, nem a caridade, nem a higiene intervieram de qualquer modo. O escravo emancipado, sua família, sua descendência encharcaram putrescentes no desamparo, em que se achavam atascados. E eis aqui está como a política republicana liquidou o nosso antigo operariado, a plebe do trabalho brasileiro durante os séculos da nossa elaboração colonial e os quase setenta anos do nosso desenvolvimento sob a monarquia.
Continua em próximo Post
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