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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

ÁGUIA DE HAIA – 5ª PARTE: QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS DO BRASIL

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A SEGUNDA EMANCIPAÇÃO
Era uma segunda emancipação o que se teria de empreender, se o abolicionismo houvera sobrevivido à sua obra, para batizar a raça libertada nas fontes da civilização. Mas o abolicionismo degenerara da independência das suas origens, adotando o culto da princesa redentora, os cabeças da causa vencedora adormeceram nos seus lauréis, e a república, reacionária desde o seu começo, desde o seu começo imersa no egoísmo da política do poder pelo poder, traidora desde o seu começo aos seus compromissos, tinha muito em que ocupar a sua gente, para ir esperdiçar o tempo com assuntos sociais.
Nem mesmo quando algum dos lidadores da campanha recém-terminada se animasse a encetar a segunda, haveria onde a lograsse abrir com vantagem; porque só no governo parlamentar existe o terreno capaz de dar teatro a essas cruzadas morais, e essas lutas pelas idéias nas regiões mais altas da palavra, onde elas se fecundam. No presidencialismo não há senão um poder verdadeiro: o chefe da Nação, exclusivo depositário da autoridade para o bem e o mal.
Desse poder me arredaram sempre os tuxauas e morubixabas do regímen. Na constituição vacilante deste, a minha exclusão do posto supremo tem sido, entre eles, o único ponto de acordo. Destarte, sem autoridade para qualquer iniciativa susceptível de resultado, a minha tarefa, no meio das batalhas pessoais em que se debate a impotência do parlamento, se viu reduzida a bradar pelas leis, que se imolam, e contra os abusos, que se consumam.

AS RESPONSABILIDADES
Eis os homens, senhores, que se atrevem a chamar-me a contas dos meus sentimentos em relação ao operariado, ao operariado atual, ao que tomou dos ombros da escravidão a carga do trabalho emancipado.
Para com o outro, para com o que vos precedeu no lavor penoso do solo e da indústria, não tiveram o menor movimento de simpatia humana.
Assistiram à sua perdição total, ao seu sacrifício absoluto, eles que tinham nas mãos os instrumentos do poder ilimitado; e, responsáveis de tamanha insensibilidade às amarguras das vítimas do trabalho servil, hoje se arvoram em padroeiros do trabalho livre. Como! Padroeiros do trabalho livre, eles! E contra quem? Contra mim, que convosco pretendem mexericar, babujando-me com o aleive de não sei que rancores à classe operária, de não sei que antagonismo aos seus direitos, de não sei que incompatibilidade com a sua causa. Dantes era o delator o que havia de provar a sua delação. Hoje é o delatado o que deve provar a sua inocência.
Privilégios da mentira, que, soberana inconcussa destes reinos, não há prerrogativas que lhe bastem, para impor aos seus vassalos a humilhação brutal da sua vassalagem.
Com que, senhores, sou então eu o que me hei de considerar obrigado a exculpar-me da increpação, que os meus caluniadores não documentaram? Eu, o velho abolicionista? Eu, o advogado gratuito e desinteresseiro dos escravos? Eu, é que me devo levantar, cabeça baixa, à barra do tribunal, para demonstrar que, amigo, ontem, do trabalhador cativo, não aborreço, hoje, o trabalhador livre? Pois os meus serviços à redenção do primeiro não estarão aí evidenciando, acima de todas as dúvidas, a minha natural inclinação pela sorte do segundo?

OS ABOLICIONISTAS E OS OPERÁRIOS
Quando um homem se vota a defender os humildes contra os potentados, por outro motivo não se concebe que anteponha os fracos aos fortes, a não ser para servir à justiça. Com os grandes e fortes está o lucro; com os fracos e humildes, o perigo. Como optar o risco, em lugar da vantagem, senão por antepor o direito à iniqüidade?
No caso do cativeiro, ainda mais se assinala, na preferência do desvalido ao poderoso, o desinteressado amor dos nossos semelhantes.
Aí a natureza e a fortuna despiram o miserável de todos os atrativos. A natureza lhe tisnou a pele, enegreceu-lhe a tez, e lhe engrossou as feições.
A fortuna o desnobreceu, o aviltou, desumanou-o grosseiramente, alarvajou-lhe os costumes, condenou-o à esqualidez, mergulhou-o na lassidão, na preguiça, no abrutamento. De criaturas racionais assim desnaturadas, só o mais arraigado sentimento de fraternidade humana ou a mais extrema paixão da caridade nos poderiam habituar ao contacto.
Mas nós nos sentimos nobilitados com ele; porque esse contacto nos ensinava a amar a justiça.
Não era fácil amá-la, quando o seu amor nos inimistava com o poderio da organização, que tinha no elemento servil o seu alimento e a garantia da sua vida. A escravidão era o alfa e o ômega da sociedade, que ela nutria, o alicerce, e, juntamente, a cumeeira do estado, que nela se incorporara. O escravo, pelo contrário, era, entre os companheiros do homem, o ínfimo dos seres animados. Entre a humanidade e a animalidade, vegetava sem os foros de uma, nem as vantagens da outra, menos bem tratado que as alimárias de estimação, ou as crias de raça.
Nós, porém, nunca hesitamos em renhir com os interesses daquela potestade, a fim de restabelecer as vítimas dessa cobiça insaciável nos direitos sagrados, que lhe ela extorquia. Não nos detinha a opulência dos senhores. Não nos atemorizava a perseguição dos governos.
Não nos repugnava a miséria dos nossos vilipendiados clientes. E, entre esses opostos extremos de grandeza e desgraça, de onipotência e sujeição, nunca houve um abolicionista que se vendesse ao dinheiro, que traísse o direito, que desertasse o seu posto. Pudessem o mesmo de si  dizer os republicanos!
Como poderia, logo, haver um abolicionista de então, que não seja hoje um amigo do operário? A causa deste é menos árdua; porquanto os interesses capitalísticos da sociedade, atualmente, não se ressentem da intolerância, que empedernia a propriedade servil, nem à organização da indústria assistem os apanágios hediondos, que barbarizavam a organização do cativeiro.
O capital de agora é mais inteligente, e não tem direitos contra a humanidade. Nem o obreiro é o animal de carga ou tiro, desclassificado inteiramente da espécie humana pela morte política e pela morte civil, que sepultavam em vida o escravo. Ao passo que a este mal lhe assistia jus à preservação da vida material, o operário tem todos os direitos de cidadão, todos os direitos individuais, todos os direitos civis, e, dotado, como os demais brasileiros, de todas as garantias constitucionais, não se queixa senão de que às relações peculiares do trabalho com o capital não corresponda um sistema de leis mais eqüitativas, a cuja sombra o capital não tenha meios para abusar do trabalho.

ABOLICIONISMO E REFORMA SOCIAL
Evidentemente, senhores, as duas situações distam imenso uma da outra. Entre a posição do trabalhador e a do escravo não há nada substancialmente comum. Mas uma relação de analogia as subordinam à mesma ordem moral de idéias. Ambas interessam ao trabalho: a primeira, nas liberdades elementares do homem e do cidadão, e a segunda, na independência econômica do trabalhador. O abolicionismo restituiu o escravo à condição humana. A reforma social, na sua expressão moderada, conciliatória, cristã, completaria, no operário livre, a emancipação do trabalho, realizada, outrora, em seus traços primordiais, no operário servil. Entre um e outro caso, portanto, não vai mais do que uma transição natural, a que os sobreviventes da luta abolicionista não deverão negar o seu concurso.
Abolicionista de todos os tempos, zeloso do meu título de serviços a essa causa bendita, por obrigado me tenho eu, na lógica das minhas convicções, na coerência dos meus atos, a considerar-me inscrito entre os patronos da causa operária, naquilo em que ela constitui, realmente, um corpo de reivindicações necessárias à dignidade humana do trabalhador e à ordem humana da sociedade.

SOCIALISMO
Teria eu dito alguma vez qualquer cousa divergente desta proposição?
Estarei, acaso, em contradição com ela, por haver declarado que não era socialista? Mas, senhores, socialista é o adepto do socialismo, e o socialismo é uma teoria, um sistema, um partido. No socialismo, pois, como em todas as crenças de partido, em todos os sistemas, em todas as teorias, a um fundo verdadeiro, com acessórios falsos, ou um fundo errôneo, com acidentes justos. Os teoristas, os sistemáticos, os partidistas não discriminam entre o grau de verdade e a liga de erro, que a inquina, ou entre a base de erro e a superfície de verdade, que o recobre, e, amalgamando tudo em uma só doutrina inteiriça, estiram a verdade, por exageração, até os limites de erro ou impõem o erro como conseqüência inseparável do assentimento à verdade.
Eis por que motivos, senhores, grave desacerto me parece reduzir a boa causa operária a uma dependência essencial da sistematização socialista. Daí o não alistar-me eu no socialismo, professando, entretanto, ao mesmo tempo, como tenho professado, a mais sincera adesão ao movimento operário nos seus propósitos razoáveis, nas aspirações irrecusáveis, que encerra, em muitos dos seus artigos, o seu programa de ação.
A concepção individualista dos direitos humanos tem evolvido rapidamente, com os tremendos sucessos deste século, para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo, restringidas agora por uma extensão, cada vez maior, dos diretos sociais.
Já se não vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual no seu direito intratável, mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à solidariedade humana.
Estou, senhores, com a democracia social. Mas a minha democracia social é a que preconizava a cardeal Mercier, falando aos operários de Malines, essa democracia ampla, serena, leal, e, em uma palavra, cristã: a democracia que quer assentar a felicidade da classe obreira, não nas ruínas das outras classes, mas na reparação dos agravos, que ela, até agora, tem curtido.
Aplaudo, no socialismo, o que ele tem de são, de benévolo, de confraternal, de pacificador, sem querer o socialismo devastador, que, na linguagem do egrégio prelado belga, amimando o que menos nobre é no coração do homem, rebaixa a questão social a uma luta de apetites e intenta dar-lhe por solução o que não poderá deixar de exacerbá-la: o antagonismo das classes.
A meu ver, quando trabalha em distribuir com mais equanimidade a riqueza pública, em obstar a que se concentrem nas mãos de poucos somas tão enormes de capitais, que, praticamente, acabam por se tornar inutilizáveis, e, inversamente, quando se ocupa em desenvolver o bem-estar dos deserdados da fortuna, o socialismo tem razão.
Mas não tem menos razão, quando, ao mesmo passo que trata de imprimir à distribuição da riqueza normas menos cruéis, lança os alicerces desse direito operário, onde a liberdade absoluta dos contratos se atenua, quando necessário seja, para amparar a fraqueza dos necessitados contra a ganância dos opulentos, estabelecendo restrições às exigências do capital, e submetendo a regras gerais de eqüidade as estipulações do trabalho.
Estas considerações terão aqui, hoje mesmo, a explanação devida, quando vos eu minudenciar a minha maneira de sentir acerca de cada um dos pontos, em relação aos quais, entre nós, se têm articulado as reclamações operárias. Mas bastaria o que já levo dito, para liquidar as falsidades, que me denunciaram à vossa malquerença como um espírito obcecado à justiça das vossas reivindicações.

Continua em próximo post
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